CAPÍTULO DOIS - EGO: O ESTADO ATUAL DA HUMANIDADE
1.8 - A IDENTIFICAÇÃO COM O CORPO
Independentemente dos objetos, outra forma básica de identificação é com o próprio corpo. Em primeiro lugar, ele é masculino ou feminino - assim, o sentido de ser homem ou mulher adquire um papel significativo na percepção do eu da maioria das pessoas. O gênero torna-se uma identidade. A identificação com ele é estimulada na mais tenra idade e nos força a assumir um papel, a adotar padrões condicionados de comportamento que afetam todos os aspectos da nossa vida, e não apenas a sexualidade. Muitas pessoas ficam aprisionadas nesse papel, e isso ocorre com mais intensidade nas sociedades tradicionalistas do que no Ocidente, onde a identificação com o gênero está começando a diminuir um pouco. Em algumas culturas tradicionalistas, o pior destino que uma mulher pode ter é ser solteira ou estéril; no caso do homem, é não ter potência sexual e não ser capaz de gerar filhos. A plenitude da vida é entendida como a completa vivência da identidade sexual da pessoa.
No Ocidente, é a aparência do corpo que, em grande parte, contribui para a percepção de quem pensamos que somos: sua robustez ou debilidade, sua beleza ou feiúra em relação aos outros. Para um número significativo de pessoas, o sentimento de valor pessoal está intimamente ligado à sua força física, à sua boa aparência, a seu preparo físico. Muitos se sentem inferiorizados em seu valor pessoal por considerarem seu corpo feio ou imperfeito.
Em alguns casos, a imagem mental, ou o conceito, "meu corpo" apresenta uma completa distorção da realidade. Uma mulher jovem que seja muito magra pode se considerar gorda e, assim, deixar de comer. Ela já não consegue ver o próprio corpo, tudo o que "vê" é o conceito mental do seu corpo que lhe diz "eu sou gorda" ou "vou engordar". Na raiz desse problema está a identificação com a mente. Como as pessoas estão se tornando cada vez mais identificadas com a mente, o que corresponde à intensificação do distúrbio egóico, tem havido também um aumento impressionante no número de casos de anorexia nas últimas décadas. Se o indivíduo com essa disfunção alimentar pudesse observar o próprio corpo sem a interferência dos julgamentos da mente ou até mesmo reconhecê-los pelo que são em vez de acreditar neles - ou, melhor ainda, se conseguisse sentir o corpo internamente, isso daria início à sua cura.
Quem está identificado com sua boa aparência, sua força física ou suas habilidades sofre quando esses atributos começam a diminuir ou desaparecer, o que é um processo inevitável. Sua própria identidade, que era baseada nesses elementos, fica então sujeita à ameaça de um colapso. Em qualquer caso, feias ou bonitas, as pessoas extraem uma parte significativa da sua identidade, seja ela negativa, seja positiva, do próprio corpo. Para ser mais exato, obtêm sua identidade da percepção do eu, que, erroneamente, vinculam à imagem ou ao conceito mental do seu corpo, que, em última análise, não é mais do que uma forma física que compartilha o destino de todas as formas - impermanência e, por fim, desintegração.
Equiparar o corpo físico percebido pelos sentidos - que é destinado a envelhecer, definhar e morrer - ao eu sempre causa sofrimento, cedo ou tarde. Deixar de fazer essa identificação não quer dizer que estejamos negligenciando ou desprezando o corpo. Se ele for forte, bonito ou vigoroso, podemos aproveitar e valorizar essas qualidades - enquanto elas durarem. Podemos também melhorar nossa condição física por meio de uma nutrição correta e de exercícios físicos. Se não vincularmos o corpo a quem somos, quando a beleza desaparecer, o vigor diminuir ou nos tornarmos incapacitados fisicamente, isso não afetará nosso sentido de valor nem de identidade. Na verdade, quando o corpo começa a se enfraquecer, a dimensão informe, a luz da consciência, consegue brilhar mais facilmente através da forma que se extingue aos poucos.
Não são apenas as pessoas que têm um corpo bonito ou quase perfeito que apresentam maior probabilidade de associá-lo a quem elas são. Qualquer um pode simplesmente se identificar com um corpo "problemático" e tornar uma imperfeição física, uma doença ou uma incapacidade sua própria identidade. Essa pessoa então está sujeita a pensar e falar de si mesma como uma "sofredora" que porta essa ou aquela doença ou incapacidade crônica. Ela recebe uma grande atenção de médicos e de outros indivíduos que estão sempre confirmando sua identidade conceitual como sofredora ou paciente. Assim, de modo inconsciente, essa pessoa se prende à enfermidade porque esta se tornou a parte mais importante de quem ela acredita ser. Trata-se de outra forma de pensamento com a qual o ego consegue se identificar. Depois que ele encontra uma identidade, resiste em se dissociar dela. Embora seja incrível, mas não raro, o ego que está em busca de uma identidade mais forte é capaz de criar doenças só para se fortalecer com elas.
Eckhart Tolle, O Despertar De Uma Nova Consciência.
0 comentários:
Postar um comentário